Eu me lembro do dia.
Tinha 11 anos de idade e estava esperando um ônibus perto da casa onde morávamos em Campinas, no bairro do São Quirino. Não sei bem o que estava indo fazer, mas me conhecendo - afinal passo muito tempo comigo mesmo - devia estar indo para o centro comprar uns gibis. Pato Donald, Homem de Ferro, Super Homem, X-Men, Batman, Tio Patinhas, Homem Aranha...coisas do gênero.
O bairro era afastado e os ônibus demoravam a passar - uma grande oportunidade para a mente de moleque viajar para longe e voltar cheia de idéias.
Foi o que aconteceu.
Naquele dia o menino que ainda tinha um sotaque forte de quem tinha sido criado no Rio de Janeiro deu uma pausa nos seus devaneios e decidiu começar a contar. Mas essa contagem tinha que ser algo especial, ele pensou. E para fazê-la especial só iria valer contar uma vez por ano.
1.
Um ano depois veio o 2. E depois o 3.
E assim os anos foram se passando e a contagem continuando, sempre me acompanhando.
Com tanta coisa acontecendo na vida, não era fácil lembrar de continuar a contagem, mas com um ano inteirinho à disposição, sempre aparecia uma oportunidade para os neurônios se conectarem e adicionarem mais um número à sequência.
8: Começando a faculdade, indo morar sozinho pela primeira vez.
9: você está no exército.
11: Primeira bebedeira
16: Caminhada em uma geleira na Nova Zelândia
20: Festa de casamento
23: Sou pai!
25: Chegada no Oriente Médio
35: Hoje
Dizem que você nunca vai conseguir entrar num rio duas vezes porque nem águas do rio serão as mesmas - e nem você será o mesmo.
Nesse momento mágico em que adiciono mais um número à minha contagem me ligo àquele moleque magrinho, tímido, romântico, cheio de idéias e sonhos.
Toda vez que adiciono um número à contagem é como se estive me conectando a todos esses Guilhermes que se foram mas que, de alguma forma, ainda estão presentes. Todos diferentes, mas na essência o mesmo.
Quando você tem 11 anos de idade um ano parece uma eternidade, mas com o passar do tempo a vida parece se acelerar. Dizem que é porque o nosso cérebro cria atalhos para as tarefas familiares e elas deixam uma impressão menos profunda mais superficial.
E conforme a vida passa quase tudo que fazemos é a repetição de algo que já experimentamos no passado. Cada vez menos coisas registram na nossa consciência, e por conta disso parece que tempo passa mais rápido. E vamos nos transformando em sonâmbulos que perambulam pelas próprias vidas.
É como fazer o mesmo caminho do trabalho para casa todos os dias: você entra no carro e de repente se vê na frente da sua casa - se não tiver um motoboy chutando seu retrovisor você não vai ter nenhuma memória do seu deslocamento.
E você se pega falando - ou ouve alguém comentando - "Nossa, este ano está voando, hein? Já estamos em (favor inserir o mês em que estamos aqui)"
A rotina e a familiaridade destróem nossa capacidade de nos maravilharmos com o que nos rodeia. O extraordinário vira ordinário depois de um tempo. E o ordinário não deixa registro.
Lembro que quando cheguei em Dubai há quase 10 tudo era novo, diferente, exótico. Cada dia reservava uma surpresa. Cada hora tinha um desafio. Novas paisagens, pessoas, estilos, jeitos de se vestir, os nomes, novos caminhos, novas burocracias e um monte de coisas mais.
Cada dia demorava dez dias para passar.
Eu adorava olhar as placas de trânsito e ter aquela sensação de "Totó, acho que não estamos mais no Kansas". Hoje eu nem reparo que elas estão escritas em árabe.
A familiaridade nos deixas insensíveis.
Mas essa máquina do tempo improvisada me ajuda a entrar em contato com esse garoto divertido com um sotaque carioca carregado sentado no ponto de ônibus. Ele me trouxe até aqui e, de uma certa forma, ainda faz parte de mim, junto com todos os outros Guilhermes que apareceram no caminho.
De uma certa forma ele é meu Motoboy, me acordando de tempos em tempos de uma jornada sonâmbula para olhar para os lados e perceber como a nossa vida é extraordinária - e cheia de possibilidades.
E a contagem continua.
O que será que o 36 me reserva?